PORTRAIT . Pedro Maia
Are we monsters?
É melhor admiti-lo já: o material original perdeu-se, até os seus autores se perderam, tudo o que resta é o acenar de uma mão, uma nuca, um par de óculos de sol protegendo olhos que nunca vão deixar de estar fechados. De certa forma estes gestos privados capturados em pelÃcula Super 8, repetidos uma e outra vez em diferentes famÃlias e em diferentes continentes, executados de forma a encenar o acto da famÃlia propriamente dita, tudo isto desapareceu. Terá desaparecido também a necessidade? Será isto aquilo que é apresentado nas projecções incrustadas de sujidade de Pedro Maia?
Eis as sombras fugazes, os materiais frágeis girando, intermitentes e trémulos como se quisessem enfatizar a fragilidade do olhar. A fragilidade destes “compactos†familiares desconjuntou-se por fi m e da sua dissolução, dos momentos fi nais do seu desaparecimento e abandono, fi caram estas imagens. Subsistem dispersas, tão desamparadas quanto os seus espectadores. Perdidas.
Quem se recordará? Quem tem tempo para olhar para trás?
Um rapaz adormece sob o peso da colcha da cama. Quando acordar verá que a sua famÃlia desapareceu, o único que resta é ele, condenado a repetir o mesmo gesto uma e outra vez. Para que outros possam um dia recordar.
E não esqueçamos os materiais. Se a famÃlia desapareceu, se as Super 8 Series de Pedro Maia marcam o desaparecimento de um certo tipo de famÃlia (será que lhe podemos chamar a famÃlia analógica? Aqueles que ainda não admitiram a bomba relógio do computador pessoal?), então os seus restos são compostos em partes iguais por fragmentos da famÃlia e do próprio mensageiro, a base quÃmica do filme, o acetato riscado que já nem uma imagem consegue aguentar, apenas uma impressão da sua passagem.
Também isto é um sinal de perda. Eis a pelÃcula ao lado da sua própria sepultura, a velar-se a si própria. Nos momentos finais do cinema quÃmico, a obra de Pedro Maia é celebração e elegia. Será que o seu encanto resulta de ter sido apanhada no momento que antecede o seu desaparecimento? Por estar demasiado perto do fogo? Todas estas imagens prestes a dissolverem-se no seu suporte material… Ou será que é o bafo quente do final que nos parece tão atraente, senão mesmo irresistÃvel?
Resta-nos tão pouco em que ponderar e tão pouco tempo que a totalidade das memórias de uma famÃlia são condensadas numa única imagem e depois unidas com as de outras famÃlias. Quão cruéis são estes actos sumários de lembrança, quão grosseira é a acção da memória. Quem de nós consegue descrever a palma da sua mão, as sombras que se abatem sobre a nossa secretária pela manhã? Tudo está a desaparecer, a esvair-se dos nossos contentores de experiências. Este é o revés que Pedro Maia insiste em nos mostrar. Nunca: está aqui perante nós! Mas em vez disso, algo muito pior: já não está aqui. O mundo está a desaparecer imagem a imagem.
Olha... Estão a dançar outra vez e com um bebé ao colo que agora já deve ser de meia-idade. Nas imagens ela é demasiado nova para se lembrar da filmagem original e agora já deve ser demasiado velha para se regalar com a textura destas recordações cheias de pó e partÃculas. Este é um mundo que tem de ser experimentado pouco a pouco, intimamente, a mão passa pela ferida várias vezes, sabendo que chegou demasiado tarde, ou demasiado cedo.
Estas imagens pertencem a uma época que nunca chegou a existir e que nunca poderá ser recordada. Apontam apenas para a impossibilidade deste tempo, deste momento, desta gravação. O autor ausente, aquele que nunca aparece no enquadramento, foi riscado e descartado, juntamente com o resto da famÃlia. Onde antes havia sorrisos, presentes de natal e de aniversário já só há húmus verde e bolhas douradas. Talvez estas “abstracções†possam tomar o lugar de todos esses momentos que escaparam à câmara de filmar: as discussões e os comprimidos, o sexo solitário e o local de trabalho. O emprego, por outras palavras, onde está o emprego do filme? E porque é que nos home movies nunca vemos
as pessoas no seu trabalho? O trabalho é apenas uma das actividades banidas deste tipo de filmes reservados para a classe que passa férias. A asserção agressiva de P. Maia acerca do suporte material evoca esta maré
perdida de trabalho, estas imagens são esforçadas, tensas e diligentes, uma zona de construção que mostra os seus limites bem como as suas incapacidades, defeitos e vulnerabilidades.
Seremos monstros pelo facto de as acharmos belas?
Em breve nem sequer restarão estes remanescentes de remanescentes, a não ser, claro, sob a forma de masters digitalmente preservadas e acessÃveis via internet. A conversão da vida privada em consumo público já está em marcha. Poderá haver de futuro pessoas que venham a acalentar as nossas memórias como se fossem suas. Quem sabe, talvez um dia essas pessoas possam vir também a ser designadas artistas.
Mike Hoolboom
Realizador